A nova tecnologia no formato dos discos que se deu em 1948 com o aparecimento do disco Long Playing, levou as gravadoras a conceber álbuns de músicas, discos de dez polegadas em capa de cartolina, inicialmente com oito canções embaralhadas ao sabor dos sucessos do artista. O passo seguinte, o aparecimento dos primeiros LPs de doze polegadas, possibilitou a expansão para doze faixas, quer dizer doze músicas soltas. Até que em 1955 a gravadora Capitol lançou o primeiro LP com nova estratégia, a de um álbum conceitual, “In the wee small hours”, com Frank Sinatra cantando doze torch songs, baladas ardentes sobre o mesmo tema, a desilusão de amores perdidos.
No Brasil o primeiro álbum conceitual surgiu antes, em 1954 no LP de dez polegadas da Odeon “Canções praieiras”, com Dorival Caymmi e seu violão interpretando oito de suas canções sob a mesma temática, ligadas ao mar, aos pescadores. A unidade dessa obra, arriscada no mercado da época, se estendia para a capa do disco, a reprodução de uma pintura do próprio autor, com duas figuras de pescadores e peixes num fundo de cores vivas.
Cantores que decidem trilhar esse caminho nos dias de hoje, isto é, gravar um CD conceitual, também se arriscam diante das contingências do período considerado de transição na evolução tecnológica da música gravada. Ouso até afirmar que bem poucos cantores brasileiros podem se aventurar nessa ideia. Maria Bethânia pode. Não teme, aventura-se e consegue marcante triunfo. “Meus quintais” traduz seu conceito sobre os donos da terra, os índios, os Povos do Brasil.
Bethânia revivesceu momentos da menina que subia numa árvore do quintal na casa de seus pais, naquele sossego de Santo Amaro, para apenas ouvir. Ouvir o que ouvisse. Ternos de reis, sambas de roda, canto livre, a voz do vento, a voz que se guarda para sempre na fundura da intimidade.
Ouvia folias e daí vem a Folia de reis dedicada ao mais velho dos irmãos homens, Rodrigo, através da canção de Roque Ferreira. Roque, cuja obra emerge do Recôncavo baiano, é autor de outras três canções e deixou-a catita pois Imbelezô Eu sua figura verdadeira, sem retoxes, absoluta.
Ela é o arco da velha índia, é corda vocal insubmissa, versos com que Chico Cesar descreve Bethânia harmonizando com a temática dos índios, com o toque do Xavante cantante. Ela é de novo Mãe Maria, pois já havia cantado depois de sua diva Dalva, ela é Maria dos sonhos e lendas, lendas da perigosa Iara da Amazônia que chega do sul por Adriana para combinar com versos de Clarice vindos das fábulas brasileiras no último telefonema de Bethânia com seu guia, o para sempre Fauzi. Lendas do bicho pintado, a onça dos índios, que o atento cientista musical Vanzolini recolheu do sertão. Lendas que sob a boniteza da lua de Zé do Norte, também clareada por Raul, espreita um bem velho Candeeiro velho nalguma Casa de caboclo.
“Meus quintais” começa requintado com o piano de Mehmari e Bethânia descerrando a cortina para se integrar no tema que intuiu, evidencia a cada momento sua intimidade com as canções brasileiras. Em cada uma, Bethânia é a soberba voz da franqueza e cordialidade, é o som de matas e águas, é a mais consistente porta-bandeira da canção brasileira.
“Meus quintais” termina requintado com o piano de Wagner Tiso na mais emotiva Dindi de tantas já cantadas, também ouvida no quintal de Santo Amaro.
Com cabelos que já embranquecem Maria Bethânia prepara-se para assumir o lindo birotinho dos cabelos brancos de Dona Canô, entregando-se de corpo e alma ao que sempre soube melhor fazer. Cantar.
Zuza Homem de Mello junho/2014
FONTE: http://www.sopacultural.com/cd-meus-quintais-maria-bethania/#sthash.iUH3VpfR.dpuf
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