terça-feira, 25 de novembro de 2008

Show Estranha Forma de Vida (1981)

Teu coração que é teatro da ilusão Comigo me Desavim, Rosa dos Ventos, A Cena Muda, Pássaro da Manhã e Maria Bethânia (em Madureira) são os cinco shows que já fizemos. Este é o sexto. — Você não vai rir? — Não. — Quero cantar a Volta do Boêmio. — (gargalhadas. Dos dois) Sempre me encanta a escolha plenamente espontânea dela, no seu papel de ouvinte apaixonada dos outros cantores. Os melhores shows que já fizemos tinham esta liberdade. A ausência do compromisso de vender um disco feito, ou de formar um repertório inédito a ser gravado. Esta postura amadora, no melhor sentido da palavra, libera o espectador escondido em nós, a criança, nosso lado mais criativo, o cantor de banheiro, o ouvinte. Além da Volta do Boêmio (do repertório de Nelson Gonçalves, para quem não sabe) logo me mostra o fado Estranha Forma de Vida, gravação de Amália Rodrigues, como "amostras" do que gostaria de cantar. — Quero fazer o show de cara lavada, usar minhas próprias roupas, um pouco como era no Comigo me Desavim. Pondero que nada impede que as roupas sejam apropriadas, teatrais, desde que expressem o espírito da proposta inicial e mais do que pintar, mas amo a idéia. A disposição da nudez, da entrega total. Nosso primeiro show feito às pressas (ensaiamos apenas uma semana) tinha uma parte em que Bethânia dialogava com Rosinha de Valença, que na estréia durava uns cinco minutos, e poucas semanas depois era um show dentro do show, durava uma hora de conversa improvisada, onde se falava de tudo e se cantava tudo. Se eu pudesse, todos os shows de Bethânia seriam só isso, o retrato de sua espontaneidade que fascina. Uma não direção. Um show livre. Nenhum roteiro. Eu mais adivinho Bethânia que dirigo. Aqueles que me atribuem uma postura rígida, repressiva ou que tais, não sabem do que estão falando. 0 melhor de nossa relação é só isso, uma brincadeira de crianças, eu um substituto do mano Caetano, suponho. Quando represento o "professor" (diretor), só consigo que ela me informe da vergonha que tem de dizer o texto em minha frente. Rimos muito, comento o absurdo, ela retruca que prefere conhecê-lo um pouco mais, antes de arriscar-se a dizê-lo, e eu que faz parte do processo errar, e para ensaiá-la fatalmente terei que assistir a seus erros. Ela emburra e ganha, acaba ficando por isso mesmo, e os dias passam, e quando damos por isso estamos às vésperas da estréia, como agora. É claro que isso não é tão total. Tenho pequenas vitórias. Vez por outra ela analisa o texto comigo, e diz timidamente uma vez ou duas, para depois o cotidiano musical nos engolir e deixar tudo por isso mesmo. Mas uma grande empatia recíproca faz com que o rendimento dessa nossa estranha forma de comunicação seja grande. Lembro a ela que no show Comigo me Desavim, até mesmo pela escassez do tempo, ela ensaiava muito, e toda a "marcação" do show, sua movimentação, foi criada (organizada) por mim a partir do que ela mesma ia fazendo nos ensaios, e que preciso vê-la em movimento, para que haja uma interação, senão corro o risco de amarra-lá de alguma forma, sem que percebamos. E o tempo passa. Poucas músicas novas. Uma inédita de Chico. Uma de Suely e Abel Silva. Outra de Rosinha de Valença e Sara Benchimol. Bethânia gosta mais de canções como roupa, como vinho, envelhecidas. Gosta mais de quando não se lembra de tê-las aprendido. Gosta da sensação de que as canções lhe pertencem. (Se bem que existem as novas que lhe caem como uma luva). 0 aprendizado evoca nela a menina exageradamente obediente. Espanto? Mas ela é ao mesmíssimo tempo, alguém que não quer obedecer nada nem a ninguém, e também, e não menos, a menina insegura que quer saber direitinho tudo como vai ser... Mostro-lhe o belíssimo texto-carta do chefe indígena norte-americano, que há cento e vinte anos atrás, antevia toda a salada ecológica que o homem branco começava a preparar. E vejo lágrimas em seus olhos. No texto ele fala sobre a estranha forma de vida dos brancos. 0 nome do fado de Amália reaparece. E conquista seu lugar, é o nome do show. — Talvez eu não vá. Mas eu imagino que depois deste show, eu gostaria de sumir, ir embora... Quando me disse isso, nas primeiras reuniões, depois do susto inicial, decifrei o desejo de lança-se inteira, e de uma forma que não percebia há alguns anos... um pouco como antigamente, um pouco mais livre dos grilhões do sucesso. Sugiro o Cântico Negro, de José Regio, o poeta português contemporâneo de Pessoa. E ao mesmo tempo reluto. Comento que ele tem sido dito muitas vezes, e que talvez pudéssemos buscar alguma coisa mais original, sei lá. Flávio Império presente comenta o quanto só no Brasil temos este tipo de cuidado, quando lá fora sempre se recria a mesma peça, a mesma música, o mesmo tudo, propiciando assim ao espectador a oportunidade de assistir a várias versões de um mesmo espetáculo. Enfim, vence a identificação de Bethânia com o poema, e penso o quanto é boba minha preocupação. E mais, desde o início combinamos a liberdade. Algumas músicas de Gonzaguinha, outras de Chico (da Ópera do Malandro, p/ex), dona Ivone Lara, Silvio Caldas, Orestes Barbosa, Herminio Bello de Carvalho, Marina, Antonio Cícero, Nelson Mota, Mauricio Tapajoz, as valsas Serenatas, Súplica, Caetano, etc. e o show vai se armando como um quebra cabeça. De um último texto meu, escolhemos dois fragmentos. Um texto de Clarice, inédito: "Passei a minha vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar. Ao tentar corrigir um erro, eu cometia outro. Sou uma culpada inocente". Se eu contar mais um pouco tiro toda surpresa do show. Chega. Ela é frágil, tímida, terna, imprevisível, rainha, tirana, adorável, uma fortaleza, menina e mulher. Ela se engana, se mente, ama o seu Teatro de Ilusão. Porque sabe tudo. É um radar. Nos últimos tempos tenho muita dificuldade em falar sobre ela, pois tenho sempre a impressão de estar me repetindo. Já falei demais. P.S. – Um registro: o reencontro com Zé Maria, o pianista, e Tereza Aragão, amigos que amam Bethânia e Bethânia os ama. E eu também. E devo pessoalmente um agradecimento ao carinho de Herminio (Belo) e Erico de Freitas. E também a Abel Silva.

Fauzi Arap – junho de 1981

Trecho em Vídeo do Espetáculo




Download do Áudio do Espetáculo:

Primeira Parte
Segunda Parte

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