terça-feira, 5 de maio de 2015

Educação sentimental



A semana do Paraná entre dois abismos: um de beleza, outro de truculência

Renato Forin Jr.

Poucas horas separaram o lume poético do show de Bethânia do massacre despótico a professores da rede pública "De vez em quando, Deus me tira a poesia / Olho pedra, vejo pedra mesmo". Lembro Adélia Prado, aquela mineira senhora, professora por mais de duas décadas, ensinando gente a ver além dos rochedos. Lembro outra senhora, baiana, cantando o poder de um dom que Deus lhe deu: "as pedras do que sou, dilui / E eleva em nuvens de poeira / Mesmo que, às vezes, eu não queira / Me faz sempre ser o que sou e fui". Tão professora quanto a primeira, esta também nos faz olhar além.

No sábado retrasado (25 de abril de 2015), teve show de Maria Bethânia em Curitiba, terra bem menos quente que Minas e Bahia. Público concentrado, silencioso, atento, atônito pela beleza de "Abraçar e Agradecer" - este é o nome do espetáculo comemorativo dos seus 50 anos. Entre luzes várias, no céu, na terra (salve Bia Lessa!), a ventania e o ouro da intérprete que transforma pedra em ouro, em nuvens. Flechas poéticas sobrevoam, atingem. Roteiro amarradíssimo que percorre os temas essenciais de uma artista madura: a reflexão sobre o gesto artístico (a canção, o teatro, mentiras reais); os amores delicados, ardentes, doridos; o protesto; a fé sem cor e sem nome; um projeto de Brasil que recorre à essência do negro, do índio, do matuto. Aqueles que, na rocha, veem Deus e, qual o poeta, brincam as pedrinhas no degrau da porta da casa. Como se cada pedra fosse todo o universo. O interior do interior.

Já conhecemos a dimensão do talento, a profundidade da voz, a habilidade cênica, a inteligência arguta de Maria Bethânia. Filha dileta de Mário de Andrade e Mãe Maria de todos nós, a semear lendas que a gente aprende e ensina. Pois é preciso aprender a aprender e ensinar a ensinar. Coisa de professor. Tão bom comemorar meio século desta trajetória, tão bom ser contemporânea a uma artista eterna. "Abraçar e Agradecer" é para celebrar e para, nós também, dirigirmos a ela a gratidão pela carreira sem concessões. O Brasil seria bem menor e desmemoriado sem ela. Através de sua voz, ele é mais bonito e menos pétreo. Vem à memória Manoel de Barros: "as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade".

Na mesma semana do show de Bethânia. Penso nas pedras do meu quintal e na quinta-feira elas parecem feias, disformes, lodosas. Dá vergonha. E o pior: olho pedra, vejo pedra mesmo. Falo do quintal de araucária e gralha-azul, tomado por carcarás. Pois a história roda, repete-se e, por instantes, a gente parece não ter aprendido nada com o regime de exceção e com o grito de artistas como Maria Bethânia. No antes e no agora, a democracia rui. Poucas horas separam o lume poético do show de Bethânia do massacre despótico a professores da rede pública empreendido por policiais, a mando do governo do Paraná. Não, não quero misturar os assuntos, mas a proximidade dos eventos e o abismo que distancia esses dois brasis são por demais fortes simbolicamente para eu não me abalar.

No mesmo quintal de Curitiba, ataques noturnos a manifestantes em vigília e, à luz do dia, bombas de efeito moral, rasantes de helicóptero, cães raivosos, jatos d’água, balas de borracha contra militantes da educação. A reivindicação? O óbvio direito de não ter a previdência extirpada pelo Estado. O resultado? Quase duas centenas de manifestantes feridos num ataque à democracia e à educação que ficará marcado na história do País. Professores e artistas sempre incomodaram muito, sabemos. Pedra – no sapato. Mas resistem, fortes, bravos, feito rocha (ou água que a atravessa).

Essa semana sombria vai passar, ao contrário da luta diária dos mestres, ao contrário dos saberes semeados na terra fértil das crianças, ao contrário do legado dos artistas. Maria Bethânia e seu irmão Caetano Veloso foram educados em uma escola pública do Recôncavo Baiano. Interior do interior. Ela, sempre que pode, nos palcos e fora dele, reitera a sua crença no poder alquímico dos professores. Gente que faz a gente ver além da dureza das pedras. "Quanto mais a gente ensina, mais aprende o que ensinou", canta. E cantou no sábado: "O meu contentamento sai de mim com voz de mágoa / Mas se eu canto a dor que existe / É que sei que, lá no fundo, / todo canto, mesmo triste, / Ameniza a dor do mundo". A gente quer – e precisa – abraçar e agradecer os professores do Paraná.

TEXTO e FOTOS:  Renato Forin Jr.


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Um comentário:

ana disse...

Maravilhoso texto de Renato, que consegue unir dois eventos tão díspares de forma inteligente e emocionante.