domingo, 8 de dezembro de 2013

Fernando Sabino: Diálogo com Bethânia em furta-cor

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Fernando Sabino: Diálogo com Bethânia em furta-cor

Como será ela, afinal? Tanto que já ouvi falar. Tantas vezes que já ouvi seus discos. Carcará. Manhã, do Caetano. Apito da Fábrica, de Noel. Rosa dos Ventos, aquele lindo show do Teatro da Praia. E este agora, A Cena Muda a que já assisti. Pois então? Baiana, irmã do Caetano, Santo Amaro da Purificação, candomblé. Escrever sobre alguém como Maria Betânia – ou Bethânia? Terá H no seu nome.

Neste estado de espírito vou para o Teatro Casa Grande. Ela disse ao telefone que eu chegasse às oito, antes vai haver um ensaio e o espetáculo começa às nove e meia. Entrasse pela porta dos fundos, o porteiro se chama Antonio Carlos.
Chego às sete e meia e ela já está se preparando no seu camarim:
- Não ensaiamos ainda, porque o pessoal não chegou.
O pessoal são os sete músicos que a acompanham, e os iluminadores. Ela mesma produz o espetáculo. A direção é de Fauzi Arap, como sempre, que entende seu ofício e entende Bethânia. Há três pessoas com ela , que têm de sair para me dar lugar no minúsculo camarim: a irmã e dois amigos.

Uma mulher-pássaro diante do espelho, cabelos presos, roupão amarelo. No palco, ela se transfigura, cresce de tamanho – ou os outros diminuem, sei lá. Fico a olhá-la, fascinado, enquanto ela passa meticulosamente uma camada de base no rosto. O nariz adunco, os olhos agora voltados para mim, brilhantes como os de um menino olhando por cima do muro o quintal do vizinho:
- Quer um uísque?
Uísque sem gelo, por causa da garganta, talvez. Nunca fez impostação de voz, só um pouco de exercício de respiração. E o cigarro não lhe afeta as cordas vocais, como a mim, que de tanto fumar ando rouco como uma gralha velha. Em compensação, bato à máquina melhor do que ela, que escreve com um dedo só.
- Escreve o quê? Poesia?
- Não: meus sonhos. Escrevo todos os meus sonhos.
- Para o seu analista?
- Não, para mim mesmo. Já parei a análise, não preciso mais.
- De que você mais gosta na vida?
- De brincar. Sou gêmeos. E você?
- Sendo dois, um brinca com o outro, não é? Sou balança. Você usa mamadeira?
- Adoro. Não há nada melhor pra angústia. Outro dia, um amigo meu, homem sério, compenetrado, foi me visitar, e estava na fossa. Então dei uma mamadeira pra ele. Ele não queria, mas acabou aceitando. Ficou bom logo.
- Com quê? Uísque?
- Não, mingau: de aveia, maizena, essas coisas. Ou água mesmo. Bebo água o tempo todo.
Várias garrafas de mineral sobre a penteadeira. Mas continuamos no uísque.
- Tem rede na sua casa?
A casa está em reforma – o decorador é o Argolo. Vai ter uma porção de redes. É uma casa chinesa na Estrada das Canoas, lá em São Conrado. Mas não é de sentar no chão não: tem móveis. Tudo baixinho, mas tem. E as paredes não são de papel: são de vidro.
- Só que acabo transformando tudo numa fazenda baiana.
Tem bicho também: cachorro, gato, tartaruga.
- O cachorro é o Sabu. Aquele ator indiano, de turbante, lembra? Sabu comeu a tartaruga. E o gato comeu um rato que tinha comido veneno, acabou morrendo também. Tem passarinho, mas só solto. Gaiola me dá aflição.
Tem um piano, mas ela não toca, apesar de ter estudado oito anos. Toca violão – dá pra se acompanhar. Vitrola e gravador, é lógico. Principalmente música americana: Bessie Smith, Nina Simone. E Billie Holiday:
- Sou pirada, tenho tudo dela.
Lê o mais que pode: tudo de Clarice, várias vezes, uma glória:
- Ela vem sempre aqui, conversar comigo, que criatura adorável. Todo show meu tem um texto dela. Menos este, que não tem texto nenhum, só música, pois é A Cena Muda. O que ela tem escrito sobre Brasília é fabuloso. Brasília, aquele fracasso triunfal. Aquele horror que dá na gente, help! Help! Help! Entao entra um garçom e pergunta: quer um cafezinho?

Passamos a falar da nossa admiração por Clarice Lispector. A conversa se ilumina de dourado. Ela me olha pelo espelho?
- Você já leu um livro chamado O Coração é um Caçador Solitário?
De Carson McCullers: o amor do casal de surdos-mudos. E A Balada do Café Triste, história de um anão.
- Já li também. E Katherine Mansfield...
Agora ela diz que vai me contar uma coisa. Faz um ar matreiro, para de se maquilar, me olha no fundo da sua adolescência:
- Eu tinha 13 anos e eles não queriam que eu lesse seu livro, houve uma espécie de conselho de família. Caetano é que ficou de decidir, como irmão mais velho, ele queria que eu lesse, então eu li.
É a minha vaidade acariciada como um gato angorá. Tento parecer natural:
- Que é que você achou?
- Curti. Principalmente por ser proibido. Mas não havia nada de mais.
Enquanto conversamos, entra e sai gente, ela cumprimenta afetuosamente um e outro. É o pessoal do show que está chegando. Tem um sentado no chão a meu lado, outro de pé junto à porta.
- Minha melhor qualidade? Acho que é não saber mentir. So digo a verdade.
- “Não tenho nenhum prazer em conhecê-lo”
Ela ri:
- Isso também não. Mas não levo desaforo para casa. O maior defeito, os meus amigos acham... Sou impulsiva, sabe? Intolerante às vezes, eles dizem. Não gosto de ser mandada.
- Inaptidão para a vida militar.
- Isso mesmo. Só faço o que eu quero.

Mas é organizada, boa administradora de si mesmo, tem lá a sua própria disciplina. Dependura sua roupa, não deixa toalha no chão depois do banho, não apaga cigarro na xícara de café. Vou perguntando, ela vai respondendo. Não deixa pasta de dentes destampada e tem horror de tubo espremido pelo meio. Resultado de educação rigorosa, em família de economia estrita. E colégio de freiras: é de formação católica, como todo brasileiro. Mas o catolicismo tem um Deus distante do mundo, sentado num trono – prefere coisas mais simples, direta, ligada à própria natureza: Candomblé. Na penteadeira o retrato da sua querida Menininha de Gantois. É filha de Iansã – me explica o sentido de cada colar ao seu pescoço: Oxossi, Ogum. Vai à Bahia sempre que pode, mas gosta de morar no Rio. Baiano é ótimo: aquela preguiça, aquele mormaço, um ritmo próprio na maneira de ser e pensar. Saiu de lá aos 17 anos trazida pela Nara, para o Opinião. E tome Carcará – não queriam que cantasse outra coisa. Ela queria Noel.

Fora do palco, que é a sua razão de viver, gosta é de fazer talhas em madeira. Tem aqueles instrumentos todos – formões, martelos, e o outro, não se lembra o nome, eu também não, é preciso que alguém à porta do camarim venha em nosso auxílio: goiva. E de pintar com purpurina. Gosta de tudo que brilha: pailleté, lamé, cetim.
- De que cor você é?
- Não sei... Acho que furta-cor. Aquela que muda conforme a luz.
- Cor de pena de pavão.
- É isso aí. Nos bosques de Viena tinha muitos.
- Que é que você foi fazer lá?
- Fui cantar.
- Nos bosques de Viena?
- Em Viena mesmo. Em vários lugares da Europa. Mas eu gosto é daqui mesmo. Aqui é que eu sei viver.
- Você vive com o corpo inteiro.
- Podes crer. Moro sozinha, mas meus pais vêm sempre, meus irmãos, meus amigos...

Lá fora a plateia repleta como sempre, à espera. Setecentos lugares e mais 300 sentados no chão. Fila na bilheteria desde três horas da tarde. Uma noite em cada temporada ela não cobra entrada: basta trazer um presente qualquer. Aparece de tudo: desde chicletes a caixas de uísque de 20 anos. E livros, discos, bonecas, bibelôs, cachorro, gato, coelho, porquinho-da-índia, perfume, doces, joias, tudo quanto é espécie de bebida, de Pitu a Moet Chandon. Leva três dias para abrir aquilo tudo, quase 2 mil presentes. Já lhe deram até um carro – um bugre. Nunca apareceu uma só coisa ofensiva, mesmo por brincadeira de mau gosto.

Nove e meia, já – o espetáculo vai começar atrasado. Não tem importância, tudo no Brasil é assim mesmo – ela me dá um exemplar de seu programa com uma afetuosa dedicatória. Despeço-me, prometendo voltar para rever o show. Verei agora com outros olhos – olhos que puderam ver de perto a cantora admirável, e conhecer a fosforescente personalidade com que ela sabe ser Maria Bethânia. Com H, e acento circunflexo.

                 Jornal do Brasil, Caderno B, segunda-feira, 12 de agosto de 1974

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