quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

A alma gêmea de Bethânia

Não sei se os senhores sentem o mesmo - e peço para que, quem encontrar irmandade em minhas sensações, manifeste-se aqui -, mas percebo claramente as linhas poéticas de Fauzi Arap em Bethânia quando vejo ou ouço um trabalho do qual ele partilhou de alguma maneira.

Mais que isso. Aprendemos, admiradores da intérprete, a olhar também para Fauzi com olhos quase devotos. Emprestamos a reverência de Bethânia e reconhecemos nele o diretor que melhor soube compreender e interpretar artisticamente sua alma de cantora e atriz. Caetano Veloso, em O Mundo Não é Chato, explica: “Fauzi Arap atinge o fundamental da arte e da pessoa de Bethânia através de uma espécie de magia”.

Particularmente, conheço pouco dos caminhos de Fauzi Arap. Mas ele também me faz iniciado de alguma coisa que nem eu mesmo sei. E explico o porquê. Poucos são os homens de teatro que conheci com uma noção tão transcendente, tão fascinante e tão irmã de minhas ideologias sobre o fazer artístico. E, se já percebia isso pelos depoimentos e opiniões de tanta gente grande, certifiquei-me da beleza de Fauzi em seu livro Mare Nostrum – sonhos, viagens e outros caminhos.

Nos idos da página 234, ele nos epifana (permitam-me o neologismo): “Existem os que fazem, do teatro, profissão. E conseguem viver suas vidas sem risco, escondidos atrás de suas personas profissionais. No meu caso pessoal, isso nunca foi possível. Nunca consegui circunscrever a magia implícita do fazer teatral ao tablado ou palco. Nem como ator, nem como diretor ou autor. Maldição ou bendição, quem adivinha a alquimia inerente à arte da representação não pode nunca mais repousar à superfície. E vê-se obrigado a buscar um mergulho cada vez mais profundo para tentar decifrar os mecanismos de funcionamento dos cordéis que movem as pessoas, seus impulsos e emoções. A busca desse conhecimento acaba por tornar-se um compromisso, mesmo tomado à revelia. Foi o itinerário particular que acabei percorrendo que me fez descobrir o palco como uma espécie de ‘cadinho alquímico’”.

Mare Nostrum é leitura que se auto-recomenda, pelas palavras do autor, aos apaixonados - como nós -; àqueles que buscam, na mentira da arte, a verdade disfarçada de vida: em sua Estranha Forma, em sua Imitação. Por ter penetrado tão fundo, não só nessas obras-primas, mas também em outros trabalhos de Bethânia, como Rosa-dos-Ventos e A Cena Muda, tornei-me discípulo espiritual. E é por isso que percebo as mãos mágicas de Fauzi desenhar a Vida, de Chico, no prólogo de Amor, Festa e Devoção. Ou a Saudade exibindo seu direito (a festa) e o seu avesso (o intimismo) – faces da mesma dor. Ou a revolta íntima de um Ultimatum acenando para o Movimento dos Barcos no show anterior.

Em tudo de belo, há a presença dele, dela. E eles parecem conduzir-se mutuamente no desenrolar de carreiras paralelas, que se tocam levemente, se beijam em momentos áureos, e produzem o que, na arte brasileira, há de mais profundo.

Fauzi assistiu a Bethânia em Opinião. Bethânia conheceu Fauzi vendo-o encenar o bêbado Teteriev da peça Pequenos Burgueses. Fortíssimas presenças cênicas sob o refletor. Ambos. Bethânia descreveu a antevisão do mágico encontro em Maricotinha: “Quando aquele ator entrou em cena, eu vi tudo o que eu ansiava, de palco, de presença de ator, de voz, de emissão – tudo. E disse: ‘um dia vou conhecer esse homem’”. Foram apresentados, tornaram-se amigos. Posteriormente, parceiros de trabalho.

Comigo Me Desavim (1967) foi o primeiro espetáculo de Bethânia dirigido por Fauzi - o botão que daria numa Rosa-dos-Ventos. O roteiro do show, integrando canções e textos, que se desenrolavam como numa narrativa, além, é claro, da teatralidade à serviço da música popular, seriam características que Bethânia levaria para sua carreira. Uma assinatura artística também manuscrita por Fauzi.

É pelo predicativo de “Mestre” que a intérprete se refere a ele - lembremos as bênçãos de Tempo Tempo Tempo Tempo. Há muito de místico, há muito de mágico em Fauzi. O roteiro de Rosa-dos-Ventos (1971) foi concebido a partir de uma estrutura mandálica, com a simbologia dos elementos naturais. A influência advinha das constantes leituras da obra de Jung realizadas por Fauzi à época. O mergulho transcendente do diretor dialogava com metáforas raras e ricas, conferindo polissemias aos signos cênico-musicais.

Em A Cena Muda (1974) seria a vez de silenciar a palavra falada. O auge da ditadura militar ditava, então, o seu “cale-se”. Fauzi constrói um roteiro inteligentíssimo só com canções: medleys que tudo dizem, com a galhardia de um silêncio. A cena está muda, mas grita, ironiza, debocha. Dá um tapa na cara dos mandarins do Brasil.

Muito se poderia dizer sobre cada um dos shows - inúmeros são os símbolos, maior ainda é o fascínio de quem os frui. Assim foi com o bramido irisado do Pássaro da Manhã (1977); o estrondoso sucesso de Álibi (1979); o existencial Estranha Forma de Vida (1981); o libertário Maria (1988); sem contar o Imitação da Vida – que dispensa adjetivos – e um sem número de palavras, ditas ou cantadas que nos emocionaram e nos emocionam, permanecendo incólumes no tempo, como estandartes de beleza. São verdadeiras cartilhas de erudição da alma.

A Enciclopédia Itaú Cultural classifica Fauzi como “pioneiro na direção de shows musicais no Brasil e também, reconhecidamente, um dos melhores diretores de ator do país”. Bethânia (em Maricotinha) também fala dessa característica idiossincrática do diretor, ao transitar, com conhecimento de causa, entre as artes: “Ele conhecia o repertório da MPB de uma extensão que eu nunca imaginei que uma pessoa de teatro pudesse conhecer”.

Qualquer que seja o território onde adentre, o fato é que Fauzi demonstra sempre uma reverência e uma seriedade admiráveis pelo mistério da criação artística. Eis a irmandade com Clarice, para quem a inspiração, de tão natural, chegava às margens do sobrenatural, brotando das “profundezas do inconsciente individual, coletivo cósmico”.

A relevância da obra de Fauzi está aí, para o mundo ver, guardada na história. Sua trajetória de ator, iniciada na década de 50, está inscrita nos anais de teatro como uma das melhores que os tablados brasileiros já avistaram. É interpretando que participa das primeiras montagens do Oficina e do Teatro de Arena.

A carreira de diretor começa, já em 65, ao montar Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector; dirige, com reconhecido sucesso, Tônia Carrero na emblemática versão de Navalha na Carne. No posto de diretor, revela ainda grandes nomes de nossa dramaturgia, dentre eles Antonio Bivar, que co-dirigiria Bethânia em Drama – Luz da Noite.

Como caminho natural para uma poética tão sua, torna-se autor em 1975. É o ano em que cria a peça Pano de Boca, espetáculo metalingüístico, em que aborda os caminhos do teatro nas últimas décadas, retomando acontecimentos que ruíram o Oficina. Mais tarde, em Às Margens do Ipiranga, a temática repete-se, mas reflete, agora, sobre o Arena. Na seqüência criativa, que segue até nossos dias, textos e direções de sutilezas sem-igual. Atentem, por exemplo, para O mundo é um Moinho (2003) e o recente Chorinho, que contaram, ambos, com a interpretação de Caio Blat.

As atitudes discretas de Fauzi, com relação à imprensa e à recepção ou repercussão de seus trabalhos, só fazem aumentar a sua elegância e grandeza. Explico: a circunspecção é a atitude que devemos esperar de um homem que tanto conhece da magia do palco, que sabe exatamente que a vida real só atinge sua plenitude quando mente, sob os holofotes. Não-coincidentemente, essa também é a postura daquela que - já disseram – parece ser sua alma gêmea artística. É a impressão que, modestamente, tenho.

Reporto-me novamente ao livro de Fauzi, para a abertura do qual Maria Bethânia produziu um dos textos mais belos e apaixonados que já li, vindos dela. Permitam-me reproduzir alguns trechos.

“Encontrei no seu livro um consolo imenso, uma alegria nova (...) Logo nas primeiras páginas percebi que estava adentrando um terreno riquíssimo e fértil, e soube logo que iria me pegar fundo. Não deu outra. Intuí parar de ler, e deixei-o sobre o meu corpo, silencioso. Logo me veio um sono indomável, daqueles de antigamente quando se é criança de todo e parece que Deus põe a mão sobre nossa cabeça, ou que deitamos no colo de Nossa Senhora, para que passemos a um outro plano e possamos ver e desfrutar o que acordados não conseguimos, e de onde quase sempre voltamos com a sensação de frescor, renascimento. (...) Teu livro, para mim, é um livro de teatro, de um belo e grande ator apaixonado por teatro, de um autor iluminado, de um diretor-alquimista, um ‘eterno aprendiz’. (...) Guardo-o como se fosse um fio de contas lavadas, uma medalha encantada que carrego no peito, com a alegria de saber que não sou mais só no que penso e sinto. Você hoje é o homem que mais me interessa e que eu mais admiro. Deus lhe abençoe e lhe guarde sempre.”

Renato Forin Jr, para comunidade Maria Bethânia Re(Verso), 28 / 12 / 2009

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Em 13 de dezembro passado, o Aron, no tópico 'BETHÂNIACOS ANALISAM' escreveu:
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"Apesar de ser uma das influências mais fortes de Maria Bethânia, é difícil encontrarmos alguma notícia ou entrevista em que apareça Fauzi Arap. Qual o motivo dele nunca aparecer nas diversas homenagens prestadas à Bethânia em mais de 40 anos de carreira? E qual é a sua história? O pouco que conheço dele já me faz considerá-lo um excelente diretor, mas gostaria de aprender mais"
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E percebi que nunca havíamos feito um tópico sobre o Fauzi. Pedi à Renato Forin pra fazer um 'perfil' sobre Fauzi; e hoje Renato me fala que o texto estava pronto..."Veja se gosta"...e me enviou...'se gosto?'... me emocionei! Renato é um sujeito de extremo talento. Adoro a forma dele de escrever. Um presente de fim de ano (mais um) pro povo Re(Versiano). Obrigadíssimo Renato, sou seu fã.

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