segunda-feira, 16 de março de 2009

Show Nossos Momentos (1982)



Bethânia canta e encanta o Rio

É bonito, é bonito. Nossos Momentos, atual cartaz do Canecão, é um esplêndido exemplo do nível profissional já atingido pela música popular brasileira em palco. Mesmo na noite de estréia, nenhum tropeço ou descontrole amadorísticos prejudicando o brilho, a certeza, o desempenho perfeito e a emoção sincera do cantar de Maria Bethânia, requintadamente dirigida por Bibi Ferreira.

      Tudo está em seu lugar e ao nível destas duas estrelas. Como a cenografia de Marcos Flaksman, a coordenação musical de Gilberto Gil, os arranjos igualmente musicais de vários autores, os figurinos de Fernando Bedé, a iluminação de Roberto e Ricardo Moreira e José Egídio, os oito músicos e quatro cantoras que apóiam a estrela.

Uma conjugação de acertos que leva a casa, famosa por suas descortesia e confusão, virar fina na noite da estréia na quarta-feira passada. Um espanto. Depois da bagunça que foi o início da temporada de Gilberto Gil naquele mesmo lugar, há três semanas, repleta de empurrões e penetras, deu até para estranhar a súbita mudança de ambiente. Parecia que se estava chegando a outro endereço. Duas pouco estéticas mas funcionais grades arrumavam a entrada. Uma recepção tranqüila e serviço rápido aumentavam mais ainda a diferença. Neste ambiente, até simpático, dava para reparar nas bem tratadas celebridades como Caetano Veloso, Betty Faria, Roberto Dávila, Ferreira Gullar, Paulo Pilla e muitos outros.

Um clima civilizado, até para aquelas que não são notícia, mais ainda verificado quando o atraso para o início do show não passou de 15 minutos. Outro espanto. Já às 22h15min todo o enorme palco do Canecão, inteiramente aproveitado por Marcos Flaksman que espelhou as laterais e ainda colocou peixes e gaivotas no teto e duas enormes passarelas, já se iluminava. A banda e coro atacam Betha, Bethânia de Caetano Veloso; a estrutura azul do palco se abre e muito teatralmente chega a cantora, com o esplêndido O que é o que é, de Gonzaguinha. Aquela música que diz que a vida "é bonita, é bonita e é bonita" Um golpe de mestra de Bibi Ferreira atingindo exatamente o impacto planejado.

   A partir daí e por mais de 50 canções, evidentemente a maioria apenas entoada em poucos versos e compassos, Bethânia desfila suas maravilhosas lembranças, maiores sucessos, momentos inesquecíveis de shows e até poucas canções novas.



  Tudo bem, opção sua que, desnecessariamente, repito, deve ser respeitada. A única dúvida da proposta, em tempos tão cruéis para mitos e ídolos, fica sendo avaliar se para ela é bom, agora, apostar apenas no já conhecido e no passado. Talvez não seja em termos de mercado, concorrência muito forte, muitas jovens cantando, mas é incontestavelmente uma opção muito válida, ao nível de reafirmação de sua inquestionável posição de uma das melhores cantoras do Brasil.

Isso prova sem mesmo cantar Alteza. E de maneira muito bem ordenada por Bibi Ferreira, num roteiro musical irretocável de recordações matematicamente distribuídas por climas intelectuais e emocionais. Um encadeamento lógico em termos de carreira e de total noção de espetáculo. Por isso não há como fazer, restrições à linguagem convencional, mas exata, do show. Propostas novas, portanto, fiquem para os outros. Aqui, neste show, se existissem, seria como colocar Fernanda Montenegro de estrela do Asdrúbal Trouxe o Trombone.

Sem invenções, mas com emoção na primeira parte, Bethânia faz um ciclo Gonzaguinha apenas interrompido pelo lançamento de Nossos Momentos, outro momento de impecável lucidez criativa de Caetano Veloso. Depois vem texto. Eu, por mim tirava todos. Não porque ela os diga mal. A poesia de Vinícius de Moraes é um bom momento de sua interpretação falada, mas porque nada acrescentam já que as letras de suas canções dizem muito melhor. E aqueles conhecidos versos de José Régio (vou por aqui) realmente já encheram de tanta repetição. E agora parecem apenas uma ode ao trânsito citadino.

Lindas, mesmo, assim como os dois vestidos que usa, a iluminação que recebe, são as músicas que canta. Chega ao antológico, na interpretação de Gás Neon, outra vez Gonzaguinha, na nova e excelente Prenda de Joyce uma autora que a cada música melhora, e até num estilo que não é muito seu, seria mais de Elba Ramalho, ao interpretar o moderno nordestino De Noite e de Dia, de Moraes Moreira e Fausto Nilo.

      Tanto nas canções antigas como nas poucas novas, outros dois dados de acertos vão também ficando evidentes. Na direção musical Gilberto Gil se esmerou. Bethânia sempre esteve muito bem sob a direção de Perinho Albuquerque. Mas a constante comunhão dos dois, como acontece com todos os mortais, estava cansando pela repetição de recursos. Gil soprou ou engendrou renovação. Em lugar do estilo bolero muito marcante nos últimos discos e shows da cantora, há agora acompanhamentos mais leves e um certo jeito Lincoln Olivetti na execução que, neste caso específico, funciona bem.



Melhor ainda na realização prática, pois seus músicos acompanhantes são extremamente eficientes. Como provam José Maria Rocha (piano), Túlio Mourão (teclados), Ricardo Silveira (guitarra), Moacyr Albuquerque (baixo); Djalma Correia e Bira da Silva (percussão), Tutti Moreno (bateria) e Juarez Araujo (sopros). Em lugar das cordas, que andavam sufocando a cantora, um gostosinho vocal formado por Viviane Godói de Carvalho, Regina Ferreira, Jurema Strafacci e Nair de Candia Alem.

      Tudo contribui para que Bethânia saia bem até no Baila Comigo, de Rita Lee, em quatro sambas de Dona Yvone Lara e no maravilhoso, e bota adjetivos nisso, Vida, de Chico Buarque de Hollanda. Talvez a melhor conjugação de interpretação e música na atualidade da música popular brasileira. No final, outro golpe de Bibi, pois a cantora vem quase igual aos seus tempos iniciais. De calças compridas, blusa amarrada na cintura e cabelos em coque. A única diferença é que naqueles tempos, Opinião 1965, ela não usava maquilagem. Mas a voz é a mesma e a força também, no final nordestino que inclui até o famoso por tudo, Carcará, de João do Vale. Muito bonito este momento de trabalho coletivo de tantos profissionais competentes e emocionais de nossa música. Não vale só ver, é até para ser revisto.

Maria Helena DutraJornal do Brasil, 10/09/1982


DOWNLOAD DO ÁUDIO DO SHOW (EM DUAS PARTES) AO VIVO NA ÍNTEGRA

PARTE 1: http://www.4shared.com/mp3/lZUfWGJn/01_-_Nossos_Momentos_-_1982_-_.html

PARTE 2: http://www.4shared.com/mp3/iGQ8wjbx/02_-_Nossos_Momentos_-_1982_-_.html


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